Entrevista a Anselmo Mendes
A cortiça permite um ritual vínico
Fiel às suas origens, o reputado enólogo Anselmo Mendes dedica-se a produzir requintadas variações de Alvarinho, uma casta excepcional e típica da região onde nasceu. Acredita que há todo um ritual à volta da abertura de um vinho de qualidade com rolha de cortiça que é impensável ser reproduzido por outro vedante.

É impossível não reparar na garrafa. Bem mais alta que as demais, esguia e de um verde fumé onde sobressai o rótulo e a cápsula pinceladas a prata, chama a atenção pelo seu design estilizado e original. Até a rolha combina na perfeição com a elegância do conjunto; a cortiça muito clara, quase branca e de toque macio, traz a assinatura do criador do vinho que ajuda a preservar, Anselmo Mendes. Já o vinho é o Muros de Melgaço 2005, um Alvarinho esplêndido e requintado que os entendidos definem como “um branco tranquilo, seco, com um travo inconfundível a madeira”, a última colheita de uma marca que se estreou em 1998 e cujo sucesso tem sido crescente.
“Primeiro, as pessoas reparavam na garrafa e só depois é que resolviam experimentar o vinho. Parece que gostaram…!”, diz, sorridente, este enólogo de renome, conhecido pela sua intensa dedicação à casta típica da terra onde nasceu, Monção, no noroeste de Portugal e a poucos quilómetros da Galiza espanhola. “Tanto o Alvarinho como o Loureiro que pode ser encontrado um pouco mais a sul, em Ponte de Lima, são duas castas únicas, excepcionais e completamente diferentes das restantes,” explica com entusiasmo Anselmo Mendes, 44 anos e uma paixão assumida pela viticultura. E os seus vinhos assim o comprovam.
As tais primeiras três mil garrafas do seu Muros de Melgaço Alvarinho 1998 desapareceram num ápice e a actual produção de 15 mil unidades destinadas ao segmento alto e médio-alto, é inteiramente absorvida pelo mercado interno. Em 2001, estreou a sua segunda marca, o Muros Antigos Alvarinho, trinta mil garrafas que exporta, sobretudo, para a Bélgica, onde é muito procurado nos restaurantes da capital. “Parece que vai muito bem com as moules, aquele prato típico do país feito à base de mexilhões.” Alguns anos depois, em 2005, chega a vez do Loureiro, uma casta extremamente perfumada que cresce com abundância no Vale do Lima (Minho) e lança a primeira colheita do Muros Antigos Loureiro, bem como de uma outra “invenção” sua, o Passionada, um doce natural de loureiro que resulta da paragem da fermentação a frio. “Não é um late harvest (colheita tardia) porque nesta região tal é impossível de se fazer, pois chove muito no Outono. Mas tem aquela doçura própria da uva. As senhoras adoram.”
Aliás, tudo nos seus vinhos remete para a região onde nasceu e cresceu e que defende acerrimamente: não só as castas características e originais, um”património riquíssimo” que diz ser necessário explorar e comunicar, como os “muros” que recortam a miríade de parcelas e talhões de terra que demarcam os campos em minifúndios e que dão nome às suas criações. Anselmo Mendes explica que, em 1642, mais de cem anos antes da instituição da Região Demarcada do Douro (1756), já existiam referências ao vinho feito quer em Monção, quer no Vale do Lima e que, só em 1927, virão a integrar o que hoje é considerada a Região Demarcada dos Vinhos Verdes. “Essas referências indicavam ainda, a existência de uma feitoria inglesa sedeada em Viana do Castelo, comprovando que já existiam vinhos de prestígio nesta zona,” insiste.
Mas com a explosão demográfica que teve lugar no noroeste português durante o século XVIII e XIX e com a chegada das novas culturas como o milho e a batata, a vinha é empurrada para a borda dos campos e a produção decresce. Assim, o vinho que tanta fama trará à região, o chamado vinho verde (branco ou tinto) com gás (ou “agulha”), de baixo teor alcoólico e muito popular, só ganhará pujança durante o século XX, designadamente a partir da década de 50 e 60. Um pouco antes, porém, em meados dos anos 30, fazia furor nos mais finos restaurantes de uma Lisboa totalmente seduzida pelo frenesim da belle époque, um vinho branco originário de Monção, mas em tudo diferente dos típicos vinhos verdes aí produzidos. Sem gás, com um grau de álcool muito superior (entre 12 e 13 graus), seco e de cor citrina forte, chamava-se Galeguinho e era fruto das experiências de um viticultor da terra que, após reunir uvas de diferentes talhões e de aplicar alguns conhecimentos mais apurados das técnicas de vinificação, produzira pequenas quantidades deste branco original que imediatamente se tornou num sucesso. “O nome Alvarinho surge mais tarde, depois da classificação das castas e graças ao trabalho notável de Armando Galhano, durante anos o enólogo do Palácio da Brejoeira, e que tinha uma verdadeira paixão por esta casta. Foi graças aos seus esforços que, a partir de meados do século passado, quer a produção, quer a fama do Alvarinho aumentaram incrivelmente e ainda nem se falava em varietais”, explica com a convicção de quem já estudou e pesquisou o assunto e de quem, inclusivamente, publicou trabalhos científicos nesta área.
Filho e neto de agricultores e produtores de vinho, Anselmo Mendes quis prosseguir na tradição familiar e optou por uma licenciatura em Engenharia Agro-Industrial (Instituto Superior Técnico), à qual se seguiu uma pós-graduação em Enologia (Universidade Católica), bem como uma série cursos de formação profissional na Universidade de Bordéus. Durante dez anos ganhou calo e experiência na Sociedade de Vinhos Borges onde, conta, fez “de tudo”. “Vinhos do Porto, aguardente, espumantes, vinho verde, vinhos de mesa do Dão e do Douro, enfim, a Borges foi, para mim, uma grande escola”.
Torna-se, entretanto, consultor da Provam – Produtores de Alvarinho de Monção, bem como de várias outras marcas, assinando vinhos de reconhecido prestígio como os durienses Quinta da Gaivosa ouCalheiros Cruz Grande Escolha, entre muitos outros. Mas continua fiel à sua região de nascença onde vai buscar as uvas para os seus monocastas, muito embora recuse qualquer associação ao típico vinho verde de baixo preço e muito gás. “Infelizmente, confunde-se a região com um tipo de vinho que aí se faz. Eu não tenho nada contra o gás, mas acho que num Alvarinho de qualidade superior, o gás é perfeitamente dispensável”. Há pouco tempo, apresentou a sua última declinação da casta Alvarinho, três mil garrafas de um vinho feito “à moda antiga” e ao qual resolveu chamar, simplesmente,Anselmo Mendes. “Eu tinha memória daqueles perfumes da minha infância que nunca encontrei nos vinhos que faço. Então, resolvi fazer um branco com a chamada “curtimenta”, ou seja, como se fazia antigamente, quando se deixava arrancar a fermentação com a película da uva, tal como nos tintos, para ganhar cor e acentuar os taninos.”

Candidato seguro a topo de gama internacional da casta, este Alvarinho “à moda antiga” revela grande capacidade de evolução em garrafa: dez anos, garante o seu enólogo, desde que vedado por uma rolha de cortiça natural. “Aliás, houve um alemão a quem eu enviei algumas garrafas de Alvarinho que me obrigou a usar vedante sintético. Acedi, mas enviei também uma nota a dizer que não me responsabilizava por oxidações prematuras.” Defensor convicto dos vedantes naturais e ecológicos, Anselmo Mendes diz que só utiliza rolhas da mais pura cortiça em todos os seus vinhos. “Para mim, estando resolvidos os problemas relativos ao TCA e derivados (Tricloroanisol, um composto químico que pode contaminar a cortiça e originar o chamado cheiro a mofo), não há produto nenhum que tenha a elasticidade, a memória elástica e os atributos únicos que a cortiça possui. Por outro lado, há todo um ritual à volta da abertura de um vinho de qualidade que é impensável ser reproduzido com um screw cap(cápsula com rosca de alumínio) ou com um vedante sintético”.
Texto: Leonor Vaz Pinto
leonorvazpinto@gmail.com
Fotos: Victor Machado
vmachado@iol.pt
Ano: 2006