Entrevista a José Maria Soares Franco
Ousar desafiar o tempo
Foi no Douro que se estreou e é no Douro que volta a apostar, ao lançar-se num ambicioso projecto vitivinícola, e depois de ter assinado as últimas colheitas do mais célebre tinto português – o Barca Velha, o único vinho que ousa desafiar o tempo.
Passam alguns minutos das 11 horas da manhã e José Maria Soares Franco lança um olhar apressado para o relógio. A sua figura aprumada recorta-se contra a imensa janela escancarada sobre o rio Douro e o casario portuense. Uma luz tranquila de Outono inunda a sala de provas da A.A. Ferreira, em Gaia, onde as paredes revestidas a relíquias de outros tempos, garrafas de rótulos empoeirados e nomes famosos, atestam os bons pergaminhos da empresa na arte de fazer vinho ou, melhor dizendo, grandes vinhos. “Afinal, ainda temos tempo”, exclama. E explica: É que todos os dias, às 11:30 tenho a minha hora de prova.”

Aos 52 anos de idade e depois de 28 vindimas no Douro, “uma paixão” que assume com orgulho, o enólogo José Maria Soares Franco assinou um dos acontecimentos vínicos do ano, o lançamento de mais um Barca Velha, um vinho quase mítico e, sem dúvida, o mais célebre tinto português, já que são necessários, no mínimo, seis anos de envelhecimento em garrafa e uma qualidade excepcional para que uma colheita mereça esta denominação. O ano passado, em 2006, foi lançada a de 1999, que o millieu provou e aprovou, uma produção de pouco mais de 30 mil garrafas rapidamente absorvida pelo mercado. Mas este ano, a sua vigésima nona vindima será diferente. Também no seu bem amado Douro, embora, desta vez, com a primeira colheita de um novo desafio; a realização de um projecto próprio, o sonho de qualquer enólogo.
Depois de vários anos de “grande realização pessoal” passados na Sogrape, José Maria Soares Franco juntou a sua experiência à de João Portugal Ramos, enólogo reputado e um dos principais responsáveis pela enorme evolução qualitativa sofrida pelos vinhos do Alentejo. Sendo o accionista maioritário da Gestvinus (a holding que engloba as empresas J.Portugal Ramos Vinhos, a J. Portugal Ramos Sociedade Agrícola, Falua e Consulvinus), faltava-lhe no seu portefólio a riqueza inconfundível dos vinhos do Douro, a mais conhecida região portuguesa e uma referência incontornável tanto no mercado nacional como internacional. A entrada de Soares Franco para o capital da holding veio suprir esta lacuna e, muito embora, ainda estejam à procura de terrenos no Cima Corgo e Douro Superior para o plantio de vinhas próprias, a vindima de 2007 já está assegurada através do arrendamento de adegas e da compra de uvas seleccionadas. Dez milhões de euros é o investimento previsto para os primeiros cinco anos deste ambicioso projecto e que, segundo Soares Franco, prevê lançar para o mercado “no mínimo, três tintos, um branco e dois Portos mais vocacionados para as categorias especiais”. As tradicionais castas durienses continuam a ser a grande aposta – Touriga Nacional, Touriga Franca, Sousão e Tinta Francisca (para os tintos) e Viosinho, Arinto e Verdelho (para os brancos) – e a produção de um vinhoPremium é já uma certeza.

Natural de Lisboa, embora oriundo de uma família com raízes alentejanas, foi em Azeitão, nas caves da empresa José Maria da Fonseca que, recorda, se apercebeu “da magia e dos mistérios que adivinhava existirem numa garrafa de vinho”.
“O meu pai era não só primo direito como médico de família dos quatro irmãos Soares Franco, os proprietários da empresa, e mantinha com o seu líder, António Porto Soares Franco, uma relação de particular amizade; foi ao acompanhá-lo nas suas visitas profissionais que tomei conhecimento com o mundo dos vinhos”. O gosto pela terra e pela natureza levaram-no a optar por uma licenciatura em Agronomia (1972/1977) e a memória desses tempos, por um estágio na Estação Vitivinícola Nacional (1978), em Dois Portos, numa época em que não existiam enólogos mas sim provadores. Era o caso de Fernando Nicolau de Almeida, o célebre criador do primeiro Barca Velha, em 1952, e figura emblemática da A.A. Ferreira, onde Soares Franco ingressa em 1979, após uns breves meses de estágio no Instituto dos Vinhos da Madeira. “Tive o privilégio de trabalhar com o Fernando Nicolau de Almeida até 1987, ano em que se reformou e eu assumi a responsabilidade da direcção de Enologia”. Em finais desse mesmo ano, a empresa é comprada pelo Grupo Sogrape, actualmente líder nacional do sector e detentor de um vasto portefólio de marcas. José Maria Soares Franco passa também a ser o responsável pelo projecto Carvalhais, que procurava reestruturar e dar uma nova imagem aos vinhos do Dão. “Mas, quando a Sogrape opta por concentrar ainda mais o seu esforço de aquisição e produção no Douro com a compra da Ofley em 1996, e da Sandeman em 2003, o volume de vinho do Douro e Porto passou a ser de tal ordem, que deixou de ser possível ficar com as duas regiões e passei a ficar responsável apenas pelo Douro.” Além de ter participado na elaboração dos Barca Velha de 1981, 1982, 1983 e 1985 e de ter sido o responsável directo pelas colheitas de 1991 e 1995, estiveram sempre sob a sua alçada todos os vinhos do Douro onde se incluíam os vinhos do Porto das três marcas – Ferreira, Sandeman, Offley –, o brandy Constantino, vinhos verdese do Douro, brancos e tintos da Casa Ferreirinha, como os topo de gama Quinta da Leda, Callabriga, Reserva Especial, entre outros.
Embora já totalmente devotado ao seu novo projecto, o enólogo recorda as idiossincrasias do vinho que o celebrizou: “O Barca Velha foi criado à imagem e semelhança do Porto Ferreira Vintage, o meu outro vinho de eleição, cumprindo-se assim o sonho do Nicolau de Almeida de criar um tinto que se assemelhasse em tudo ao que este Vintage tem de melhor; ser engarrafado novo, jovem, corpulento, robusto e sem tratamentos, preparado para evoluir bem na garrafa e atingir o auge com o tempo e com a idade, mostrando o que o vinho pode ter de melhor que é a sua complexidade”. E prossegue, convicto: “O Barca Velha é o único vinho que ousa desafiar o tempo. Todos os outros vinhos, mesmos os actuais grandes tintos do Douro, são comercializados muito jovens, com apenas dois ou três anos. Por isso, quando me perguntam porque é que levava tanto tempo a declarar um Barca Velha, respondo sempre que, se eu precisava de muito tempo para ter certezas, também o vinho precisa de tempo para se revelar.”
A rolha de cortiça e o Barca Velha
Tempo, mas não só. Necessita também de vários elementos, todos eles cuidadosamente estudados até ao mais ínfimo pormenor, para que o processo se desenrole na perfeição; a garrafa mais adequada, as condições essenciais de armazenamento e, claro está, uma rolha de cortiça natural, a melhor do mercado. Engarrafado aos 20 meses, o vinho é provado regularmente durante seis a oito anos e só as colheitas que atingem a qualidade excepcional é que recebem a designação de Barca Velha. Caso contrário, serão Colheita ou Reserva Especial. “É durante este longo período de maturação em garrafa, enquanto se esperava que o vinho evoluísse e ganhasse essa complexidade excepcional, que o papel da rolha ganha preponderância, revelando-se extraordinariamente importante,” defende. “Aí, a influência da rolha, desde que seja boa e esteja isenta de aromas defeituosos (vulgo TCA, o composto Tricloroanisol), é muito positiva, pois pequenas diferenças na sua qualidade dão origem a pequenas diferenças na qualidade final do vinho e nós sentimo-lo, sobretudo na intensidade dos aromas.” E conclui, explicando ainda que oBarca Velha, à semelhança de um Vintage, é um vinho que beneficia de uma maturação em garrafa favorecida pela vedação com uma rolha de cortiça natural de qualidade.
Texto: Leonor Vaz Pinto
leonorvazpinto@gmail.com
Fotos: Victor Machado
vmachado@iol.pt
Ano: 2006