Entrevista a Júlio Martins
Júlio Martins é CEO da Everythink, uma empresa que nasceu de um projeto extracurricular desenvolvido por um grupo de alunos da Faculdade e Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), desafiados a explorar as propriedades acústicas de materiais compósitos em instrumentos musicais. A cortiça revelou-se como um material de eleição, não só pela componente visual e emocional, mas também de performance técnica.
APCOR – Como surgiu a Everythink?
Júlio Martins – A Everythink surgiu na sequência de um projeto extracurricular desenvolvido por um grupo de alunos da Faculdade e Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), desafiados a explorar as propriedades acústicas de materiais compósitos em instrumentos musicais. Essa experiência trouxe um conjunto de conhecimentos e, eu diria, uma dose de entusiasmo e confiança, que quisemos aproveitar e, por isso, criamos a empresa quando estávamos a terminar o curso. Mantivemos a vocação de criar novos produtos, serviços e experiências, desde logo com a perfeita noção de que o design e a engenharia deveriam sentar-se lado a lado no processo criativo e, juntos, ter impacto positivo na vida das pessoas. Reunimos à nossa volta um conjunto de pessoas e desafios muito diversificado, envolvendo grandes empresas, start-ups e centros de investigação, e, em paralelo, criamos uma unidade interna ligada aos instrumentos musicais, construídos em materiais compósitos como a fibra de carbono, sob a designação da marca AVA.
“Gostamos de pensar em coisas que não existem.” É desta forma que a empresa se afirma. Pode explicar esta ideia?
Sim, porque na verdade é isso que fazemos. O dia-a-dia da Everythink é gerar ideias e conceitos para criar algo novo. Pode ser um novo serviço, um produto, até mesmo um novo modelo de negócio. Claro que, muitas vezes, é baseado em algo que existe, mas que sabemos que como está não é suficiente e que é possível, e necessário, fazer melhor. Daí que somos desafiados continuamente para pensar no que ainda não existe e que pode ajudar as pessoas e contribuir para o seu bem-estar.
Esta postura permite-nos trabalhar, a partir de uma folha de papel em branco, coisas tão diferentes como aeronaves, bicicletas, microscópios, dispositivos médicos, equipamento doméstico, mobiliário, guitarras elétricas ou violinos. Mas não só. Porque pensar em coisas que não existem não se esgota só em produtos. Existem muitos desafios para evoluirmos, desde serviços de saúde e telemedicina para facilitar a vida dos médicos e melhorar a vida dos pacientes, à criação de novos modelos de negócio, mesmo em sectores como o vinho ou a cortiça, ou à melhoria da vida das pessoas, com os grandes desafios societais emergentes e a própria mobilidade urbana.
Nós costumamos dizer que não somos especialistas em nenhum sector particular, mas sim na capacidade de implementar processos criativos que cruzam diferentes áreas, tecnologias, ciências e indústrias que, com base em metodologias adequadas e por efeito de polinização oferecem resultados únicos, inovadores e exequíveis.
Cortiça e inovação. Combinam?
Claro que sim! Os exemplos são imensos e só pela inovação foi possível manter esta indústria competitiva e pujante até hoje.
A visibilidade dessa inovação junto da opinião pública é que poderá não ser tão visível dada a natureza B2B dos principais negócios da cortiça. Os exemplos que mais se destacam sob o selo da ‘inovação’ para o público em geral, são os projetos, ditos, de ‘design’, cujo caráter inovador se apresenta como peças de autor e em pequenas séries. Mas mesmo nestes casos, apesar do peso económico talvez menos relevante e mensurável para a economia do sector, reforçam a presença mediática e contribuem para a valorização do material.
Há margem para crescer?
Sem dúvida. Existe um potencial de progressão enorme. Existem diversas maneiras de ver a inovação e todas são muito favoráveis à cortiça enquanto sector. Primeiro, porque a inovação emerge não só do produto em si, mas também de um contexto de propósito, processos, as pessoas e políticas. A cortiça encaixa perfeitamente nesta linha de pensamento e nestes 4 pilares, pelo seu caráter de produto natural, sustentável, com respeito pelo ambiente, reciclável, confortável, agradável ao toque e que convida mesmo a exploração aprofundada.
Depois, porque se olharmos pelo ponto de vista da classificação, bastante questionável, de indústrias tradicionais vs indústrias de ponta, que coloca, por exemplo, cortiça, têxteis, calçado ou vinho, do lado tradicional e coloca indústria automóvel, aeronáutica do lado de tecnologia de ponta, vemos que a cortiça, fruto da inovação, dos processos de produção, da estabilização das propriedades dos materiais pode, perfeitamente estar representada em ambos os lados desta classificação: diversifica-se, dilui a dependência dos sectores actuais e encontra sectores que atribuem um maior valor acrescentado a esta matéria-prima. Por último, acredito que, do ponto de vista do design, e tendo em conta que a cortiça tem vivido sozinha nos produtos onde se apresenta, há um espaço de progressão e valorização se a colocarmos em sintonia e justaposta com outros materiais como a madeira, o aço, o cobre ou mesmo com materiais de ponta como a fibra de carbono, sem deixar de se afirmar e sem perder o seu caráter sustentável e ecológico.
A cortiça tem um carácter eclético muito especial que nos permite usá-la em diferentes aplicações.
Que produtos já desenvolveram com cortiça?
A cortiça tem um carácter eclético muito especial que nos permite usá-la em diferentes aplicações. Temos casos em que a cortiça se apresenta pela sua vertente visual e emocional em objetos de decoração de interiores, mobiliário para espaço público, elementos escultóricos, arquitetura, produtos para desporto e bem-estar, equipamento para escritórios ou embalagens. Temos, também os casos onde a cortiça dá o seu contributo pelas propriedades técnicas em aplicações para os sectores da aeronáutica, aeroespacial, soluções para controlo de vibrações ou isolamento térmico, ou por exemplo, o powerbank para veículos elétricos desenvolvido pela Everythink e Addvolt, onde incluímos a cortiça como elemento de proteção do equipamento.
Porque optaram pela cortiça? Quais as vantagens face a outros materiais?
A cortiça está sempre próxima de nós e do trabalho que desenvolvemos. Nós sempre nos quisemos assumir como agnósticos relativamente aos materiais, para podermos selecionar os materiais mais adequados a cada projeto e, dessa forma, usar a cortiça por que faz sentido. Entretanto, os designers foram descobrindo a cortiça, as empresas começaram a querer perceber como poderiam integrar a cortiça nos seus projetos e os contactos foram-se multiplicando. E não será alheio a isso o facto de estarmos sedeados no Porto, perto desta região corticeira onde, felizmente, nos situamos. Assim, e tendo em conta a nosso conhecimento do material, o domínio das ferramentas do design e as capacidades de prototipagem e fabrico, as condições reuniram-se para podermos prestar esta atenção à cortiça.
De facto, a cortiça tem um storytelling extremamente apelativo e sedutor. Sentimos que as pessoas aderem a esse enredo que, digamos, se assume cada vez mais como uma causa tendo assente nos valores do respeito pela natureza e do equilíbrio ambiental. A atenção que agora é dada à economia circular é algo que na cortiça é já, diria, quase secular, o que revela a sua responsabilidade e maturidade. É um material exclusivo, cujo toque é sedutor, agradável, valorizado. E é um material versátil, que parece simples de trabalhar, mas que não deixa de ser exigente e, por isso, tão bem tem sido conservado por esta região.
Que conselhos pode deixar para a cortiça? E para quem deseja desenvolver projetos com cortiça?
Além dos conselhos deixo, antes, um estímulo para manter a dinâmica no sector por parte dos seus responsáveis, que tem trazido excelentes resultados.
Admito que, por razões óbvias, não domino de forma tão profunda o sector das rolhas, mas acredito até que esse facto me permite ver a cortiça de uma forma mas global.
Se me perguntam, então, por contributos para a discussão… Serei suspeito de o referir, por enviesamento profissional, mas entendo que existem dois fatores aos quais este sector deveria prestar a devida atenção: o design e o marketing.
Quanto ao design, refiro-me não só ao design de produto, mas também ao design gráfico, ao branding, à comunicação visual, ao design de novos serviços, à criação de novos canais, novos públicos. Quanto ao marketing, destaco o foco no posicionamento, na atitude, na presença da cortiça, com um caráter mais moderno e sofisticado. Bem sei o esforço e o investimento que tem sido feito, mas é um campo ainda com muito espaço de progressão.
Se deixar de lado o emocional e se me colocar do lado do cliente, diria que o desafio é organizar a oferta do material, principalmente no sector dos aglomerados. Seria importante fazer uma pesquisa e descobrir o que se faz em mercados análogos (madeira, peles, aço, polímeros, cerâmicas, pedra, etc…) e implementar nesta indústria. Os designers, os prescritores ou os engenheiros não têm uma base de trabalho para poder escolher, prescrever, selecionar a cortiça como material para os seus projetos, que ofereça os dados e as características que cada um deles privilegia. Assim, ao estarmos dependentes das equipas comerciais para orientar o cliente, ficamos limitados porque o tempo das pessoas não é escalável.
Para os designers mais que um conselho fica o desafio de compreenderem o material e as suas virtudes e vicissitudes e serem os porta-vozes dos desafios que referi para o design e o marketing.
Já receberam alguns prémios com os vossos trabalhos. Quais?
Sim. Nós encaramos os prémios internacionais como uma validação individual e dos resultados do nosso trabalho no contexto global. Nos anos recentes recebemos dois
iF Design Awards e dois prémios na Bienal Iberoamericana de Design. Foram duas participações diferentes onde fomos reconhecidos pelos pares em áreas distintas do design de produto e no design estratégico. O iF Award foi-nos atribuído pelos projetos com a NOS e com a AVA e, na Bienal, fomos com um projeto de mobiliário de escritório para a FAMO e outro para a Ordem dos Engenheiros/Câmara Municipal do Porto.
Projetos na manga. Algum que esteja para breve e que queira desvendar? Quais deverão ser os principais objetivos desta aplicação?
Os projetos, tipicamente, não são nossos, mas sim dos nossos clientes, pelo que, enquanto não são públicos, temos algumas reservas em divulgar. Felizmente, temos alguns projetos interessantes em curso. Por exemplo, um desafio para a reinterpretação dos espaços de escritório, com destaque para o carácter da cortiça, o seu toque e o comportamento acústicos, e um outro desafio, para acrescentar valor à cortiça da reinvenção de um modelo de negócio, evoluindo de um processo de venda de matéria prima para um serviço de fornecimento de peças customizadas para sectores de elevado valor acrescentado. No fundo, manter a cortiça como base do negócio mas ousar mudar a forma como fazemos o negócio.

Perfil
Júlio Martins, 44 anos, é licenciado em Engenharia Mecânica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP). Natural de Santa Maria de Lamas, funda, em 2008, o estúdio de design Everythink, sedeado no Porto, juntamente com o sócio João Petiz.
Ambos lançaram, em 2011, a marca AVA, dedicada a instrumentos musicais de elevada performance e construídos com materiais e tecnologias avançadas. Entretanto, e desde muito novo, acompanha a actividade da cortiça através da empresa criada pelo seu pai e pelas ligações à região onde reside.