Estranhos na noite

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Tinha caído a noite. Agradecemos aos nossos vizinhos pelo favor, e, escutando o ruído da pick-up descendo pelo caminho de terra batida, ficámos sozinhos no terraço. Nós, e as bananeiras. Mexendo-nos para combater o frio que começava a fazer-se sentir, levantamos a nossa mochila e o colchão, e empurrámos a velha porta lamurienta em madeira maciça da nossa nova casa.

No interior da casa reinava a escuridão. Vasculhei as bolsas da mochila em busca de uma lanterna, mas obviamente não tínhamos sido precavidos a esse ponto. Acabei por encontrar um toco de vela e uma caixa de fósforos. Colocámos triunfantemente a vela sobre a pedra da enorme lareira, e sentindo-nos cheios de sorte, reparámos que alguém tinha convenientemente deixado alguma lenha lá dentro. Agora sabíamos o que fazer: Trazer o colchão para esta divisória, acender a lareira – e dormir um pouco.

Dez minutos mais tarde, e já gasto o nosso último fósforo, lá conseguimos fazer chama. Fomos então inundados pela reconfortante crepitar da lenha, à medida que a lareira pegava. Dez minutos mais tarde, todavia, estávamos a correr porta fora, arfando e com os olhos cheios de lágrimas. A lenha que tão convenientemente nos havia sido deixada … estava verde. Em vez do calor da chama por que tanto ansiávamos, tínhamos apenas feito fumo; muito fumo.

Não se tratava de uma partida de mau gosto dos nossos vizinhos, vim a descobrir mais tarde, mas de uma gentil oferta de pessoas com mais experiência do que nós. A nossa vizinha D. Maria viria pacientemente a explicar-nos isso mesmo, quando, ainda nessa semana, nos veio trazer uma cesta de ovos caseiros, o primeiro dos muitos alimentos que esta família nos haveria de oferecer no decorrer das semanas seguintes.

Na opinião dela, devíamos queimar mato verde. Tinha mesmo deixado-nos algum, disse. “Precisam de defumar a casa para a limpar de toda a bicharada que lá se alojou nos últimos cinco anos, desde que a casa ficou desabitada.” Claro, agora percebíamos. Tínhamos-lhe agradecido de coração pelo conselho, mas por alguma razão esquecemo-nos de lhe contar a nossa primeira e embaraçosa noite “enfumarada” na nossa nova casa.

Assim que o ar da sala se tornou novamente respirável, mais uma vez nos instalámos para passar a primeira noite na nossa nova casa. Agarrando em todas as peças de roupa que tínhamos connosco, aninhámo-nos bem juntinhos no colchão e adormecemos quase instantaneamente.

Às quatro da manhã, o nosso maravilhoso sono foi bruscamente interrompido e transformado num verdadeiro filme de terror. Um som arrepiante e quase ensurdecedor ecoou ameaçadoramente à nossa volta. A porta principal, que nos tinha custado meia hora para a conseguir fechar com uma cunha, abriu-se de repente, deixando entrar uma rajada de vento nocturno… e sabe-se mais lá o quê. Na profunda escuridão de uma casa sem janelas e sem luz eléctrica, voltámo-nos um para o outro no escuro, preparados para um último adeus.

Aproveitando então uma pausa antes próxima investida do ruído, sussurrei: “O que é que achas que isto é? Deve ser enorme!”

Acabámos por compreender o que se passava. Era um mocho-real. E enquanto enxotávamos o mocho de regresso à noite, certamente satisfeito e preparando-se para contar aos seus companheiros uma boa anedota, chegámos à conclusão de que se tinha empoleirado na chaminé, fazendo ecoar o seu pio profundo e gutural no interior da casa vazia. Rindo-nos agora do nosso medo, fechámos mais uma vez a pesada porta de madeira e fomos novamente dormir.

Um suave pigarro recebeu-me no terraço assim que saí para o agradável calor do sol de um novo dia. Era o Carlos. O filho do nosso vizinho tinha voltado para nos trazer o número de telefone de um outro António, este um homem da aldeia que tinha um tractor apto a rebocar o nosso jipe do lodaçal onde o tínhamos abandonado na noite anterior.

O pequeno pedaço de papel enrugado com o número foi entregue com alívio e um grande sorriso. Alívio por termos finalmente acordado, para que pudesse prosseguir com o seu trabalho do dia como pastor. Pegámos no telemóvel, esticámos os nossos membros enregelados e entorpecidos ao sol, e começámos o dia.

Fomos saudados pelo canto dos pássaros enquanto descíamos o caminho em terra batida. Um pica-pau, exibindo a sua brilhante penugem ao sol da manhã, deu-nos os bons-dias do alto de um tronco de árvore. A floresta transpirava vida. Pequenos ruídos de movimento por entre a densa vegetação rasteira marcavam a nossa passagem enquanto nos curvávamos sob os ramos onde quase tínhamos literalmente perdido as nossas cabeças na noite anterior.

Ao atingir o sopé do nosso monte, ficámos satisfeitos com as nossas certezas na primeira bifurcação, ajudados em larga medida pelo rasto dos pneus da pick-up do nosso vizinho deixado na noite anterior. Sentindo-nos como que protagonistas de um filme de aventuras, colocámos paus em cruz como marcas à entrada de outras bifurcações do trajecto em terra batida, para encontrar o caminho de regresso.

Do sopé de mais um monte repleto de sobreiros, avistámos, brilhando, o que restava do jipe alugado, agora meio afundado, mas exibindo uma única e perfeita marca de uma mão em lama seca na janela lateral – a prova da última e infrutífera tentativa de Siobhan para o empurrar da lama na noite passada.

O nosso vizinho António estava já à nossa espera, enxada na mão e um pequeno cão ao seu lado. Enquanto o som da equipa de salvamento se aproximava de nós, deu-nos um aperto de mão apressado e perguntou como tínhamos passado a noite.

O segundo António – a quem imaginativamente haveríamos de apelidar “António do tractor” nos próximos meses – cumprimentou-nos com a cabeça do banco do seu tractor. Tinha imediatamente corrido para o seu “coche de gala” assim que tinha recebido o nosso pedido de auxílio. Agora, ei-lo entrar em acção, sem a menor cerimónia. Enquanto ele manobrava o tractor para a melhor posição, foi atirada uma corda para baixo. Eu procurava um local para amarrar a corda por baixo do jipe sitiado, quando o nosso vizinho António veio em meu auxílio e atou um nó apertado.

Enquanto o ‘António do tractor’ se preparava, e eu tentava ansiosamente comandar as operações sobrepondo-me ao ruído do tractor, reparei no nosso vizinho António gesticulando para que Siobhan se juntasse a ele no banco. Para ele, o espectáculo estava prestes a começar, e era importante ter os melhores lugares. Alguns minutos mais tarde, sorria estupefacto, mas claramente satisfeito, enquanto Siobhan saltava alegremente batendo palmas e o jipe enlameado era resgatado para terra firme.

Tendo causado sensação entre os nossos novos vizinhos, despedimo-nos e partimos para buscar os nossos pertences mais práticos. As coisas que tínhamos trazido connosco e que não eram, bem, bananeiras.

Seguimos a sinuosa estrada asfaltada ladeada de sobreiros por entre os montes até à cidade mais próxima, situada a vários quilómetros e 220 curvas na estrada. Pelo menos, era o que o nosso agente imobiliário nos tinha dito quando ficáramos tontos na nossa primeira viagem nesta estrada.

“Só recentemente é que foi asfaltada”, tinha acrescentado. “Foi originalmente construída para caminho de bois”.

Estacionámos o nosso jipe salpicado de lama numa discreta rua lateral e dirigimo-nos directamente ao café mais próximo para finalmente tomar um pequeno-almoço. Perante café e uma enorme variedade de bolos, pude então relaxar o suficiente para apreciar mais uma vez a enorme beleza da fachada da Conservatória, coberta de azulejos pintados à mão. Representava a alegria do movimento da Reforma Agrária, que se tinha seguido à revolução pacífica de 1974 em Portugal. Sob um sol radioso, uma pomba da paz esvoaçava sobre as cabeças dos trabalhadores rurais.

Há apenas uma semana atrás tínhamos estado neste edifício para completar a papelada que tinha tornado a nossa casa de sonho legalmente nossa. Os antigos proprietários tinham vindo propositadamente de Lisboa, local para onde muita gente desta região tinha migrado em busca de trabalho.

Ali perante nós, impecavelmente vestidos, estavam os filhos que tinham crescido na nossa terra, nadado no rio, cultivado os seus próprios alimentos, apanhado as suas próprias azeitonas. O silêncio era total enquanto cada um esperava pela sua vez para se aproximar do balcão e assinar a venda da sua antiga casa. No momento em que formalmente abdicavam do seu património, sentia-se no ar uma pesada sensação de perda, e apercebi-me de que as lágrimas começavam a formar-se nos olhos de Siobhan. Mais tarde viria a confessar-me que tinha chegado a questionar o seu direito de estar ali, de comprar esta parte tão importante da história destas pessoas.

Assim que o último membro da família deu por cumprido o seu papel, aproximámo-nos para nós próprios assinarmos. Repentinamente, a atmosfera mudou, e fomos “atacados” pelos cinco membros da família em simultâneo, que nos inundaram com perguntas, conselhos e convites. Com um sentimento de alívio e perante a ‘bênção’ desta família, tomámos consciência nesse momento da importância do que tínhamos acabado de assumir.

Prometemos tratar das 30 oliveiras que o avô deles tinha plantado. Recebemos indicações sobre como encontrar um segundo poço escondido. Fomos informados sobre o ano em que o próximo descortiçamento deveria ter lugar.

Relembrar tudo isto agora fez-me sorrir. Nem sequer tinha a certeza de encontrar o caminho de volta sem ajuda. Tínhamos imenso a aprender com a nossa quinta e as pessoas que ainda habitavam este monte. Mas estava cheio de vontade de iniciar esta “viagem”.

(continua)

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